'Invisíveis', equipes de apoio da saúde sofrem alta pressão na pandemia
MUNDO
Publicado em 22/02/2022

Longas horas sem descanso, sobrecarga de trabalho, pressão nas 24 horas do dia, preconceito, medo de contaminação e muitos outros impactos emocionais e físicos em quase dois anos de pandemia. A vida dos profissionais de saúde tem sido uma montanha-russa que parece, às vezes, estar perto de sair do trilho. “Estamos em duas direções: do medo e das incertezas”, avalia um motorista de ambulância de Belo Horizonte.

O cenário se torna mais dramático para os mais de 2 milhões de homens e mulheres, de nível técnico e auxiliar, que exercem atividades de apoio na assistência, no cuidado e no enfrentamento à COVID-19, conforme estudo inédito da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). O grupo de profissionais considerados “invisíveis e periféricos” inclui maqueiros (que conduzem as macas dos pacientes), motoristas de ambulância, pessoal da manutenção, de apoio operacional, equipe da limpeza, da cozinha, da administração e gestão dos estabelecimentos.

 

Os resultados do estudo da Fiocruz apontam que 53% dos “invisíveis” da saúde não se sentem protegidos contra a COVID-19 no trabalho. E mais: 80% dos trabalhadores e trabalhadoras vivem situação de desgaste profissional relacionado ao estresse psicológico, à sensação de ansiedade e ao esgotamento mental.

 “Esses profissionais parecem ficar no ‘limbo’, numa situação de invisibilidade, embora desempenhando atividades muito importantes nos hospitais e em outras instituições de saúde. Com a pandemia, a situação deles, que já era difícil, piorou, com as ameaças, agressões, perda de direitos, constantes reivindicações por equipamentos de proteção individual (EPI), além do quadro dramático com o número de mortes, esgotamento devido ao excesso de trabalho e os perigos não só de contaminação como de recontaminação”, diz a coordenadora do estudo, a pesquisadora da Fiocruz, Maria Helena Machado, belo-horizontina residente no Rio de Janeiro (RJ).

Os problemas mais visíveis e complexos estão na Região Sudeste (Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais), com registros, especialmente quanto a dificuldades de acesso a EPIs, nos estados do Norte e Nordeste. Na sequência, os resultados serão divulgados nos conselhos regionais e entidades de classe, e apresentado às autoridades.

 

Cidadania social

Se causou mais de 600 mil mortes no Brasil, a pandemia, conforme a pesquisa, aprofundou “as desigualdades, a exploração e o preconceito”. Na conversa com os trabalhadores, os números ganham a emoção armazenada desde os primeiros casos da COVID no país – em 11 de março, a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou o novo coronavírus uma pandemia.

 

Técnica de enfermagem no hospital municipal de Pedro Leopoldo, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, Dilceia Madalena de Almeida, de 46 anos e mãe de um rapaz de 18, diz amar a profissão escolhida, ter muita fé em Deus e receber apoio dos irmãos, pois não tem mais os pais. Mas durante a pandemia, sofreu preconceitos e até a perda do namorado. “Parei de ir ao hospital vestida de branco, porque escutava, no ponto de ônibus, as pessoas dizendo assim: ‘Olha lá a COVID-19! Trabalho com a vida, então não dava ouvidos, pois sei que no hospital estamos mais protegidos”, conta Dilceia.

Logo nos primeiros meses da pandemia, Dilcéia se surpreendeu com o namorado após sete anos de relacionamento. Temendo a contaminação da mãe idosa, ele terminou o namoro, informando que só falariam por telefone. Muito tempo depois, quando a vida parecia voltar ao normal, ela o perdoou, os dois reataram a relação, mas, com o tempo, achou melhor pôr um ponto final. “Muita gente acha que somos máquinas, robôs, se esquecem de que somos seres humanos, que temos família.”

O esgotamento, o medo e o estresse permeiam os relatos. “Sou motorista de ambulância há 10 anos e, com certeza, esse período de quase dois anos é o pior desse tempo todo. Vivemos sempre na incerteza, com o medo de chegar em casa, pelos riscos de contaminação. Há um grande cansaço físico e mental, e nem há jeito de relaxar”, conta Edivaldo Santos, de 42 anos, motorista de ambulância.

Outro condutor de ambulância, de 26, que prefere não se identificar, destaca a sobrecarga de trabalho e os olhares enviesados do preconceito. “As demandas aumentaram durante a pandemia, então, consequentemente, trabalhamos muito mais horas, ficando além do tempo no serviço. No período mais barra pesada, sofremos preconceito, pois, quando falava sobre minha ocupação, as pessoas logo pensavam em COVID”.

 Mais valorização para a profissão é fundamental, garante Ana Paula Gonçalves Maia, técnica de enfermagem em dois hospitais de BH. “Corremos riscos de contaminação, enfrentamos insalubridade e, nesse período da pandemia, ficamos sobrecarregados. Devido à doença, sempre há funcionários ausentes, e muitas vezes um substitui três ou quatro pessoas”, afirma.

 Os dados alarmantes da pesquisa não surpreendem o diretor de saúde do Sindicato dos Trabalhadores da Saúde de BH e Região (Sindeess), Joaquim Valdomiro Gomes, para quem é notória a situação da categoria, que inclui técnicos de enfermagem, maqueiros (que conduzem as macas com os pacientes nos hospitais), alguns motoristas de ambulância, pessoal de recepção, de higienização e serviços de cozinha, entre outros. “Há uma sobrecarga de trabalho, muitos afastamentos causados pela doença, o que faz um trabalhar por dois, junto ao medo constante de contaminação”.

Situação de desgaste

O estudo que analisou as condições de vida, o cotidiano do trabalho e a saúde mental desse contingente revela que 80% deles vivem situação de desgaste profissional relacionado ao estresse psicológico, à sensação de ansiedade e ao esgotamento mental. A falta de apoio institucional foi citada por 70% dos participantes do estudo e 35,5% admitiram sofrer violência ou discriminação durante a pandemia. A maioria de tais agressões (36,2%) ocorreu no ambiente de trabalho, na vizinhança (32,4%) e no trajeto casa-trabalho-casa (31,5%).

 A pesquisa “Os trabalhadores invisíveis da Saúde: condições de trabalho e saúde mental no contexto da COVID-19 no Brasil” contou com a participação de 21.480 trabalhadores de 2.395 municípios de todas as regiões do país e descortinou a dura realidade de pessoas cujas vidas são marcadas pela ausência de direitos sociais e trabalhistas. Apesar de já atuarem há dois anos na linha de frente de combate à pandemia, muitos deles sequer possuem “cidadania de profissional de saúde”, destaca Maria Helena Machado. Também integram a lista de participantes do levantamento os técnicos e auxiliares de enfermagem, de saúde bucal, de radiologia, de laboratório e análises clínicas, agentes comunitários de saúde e agentes de combate às endemias.

Nas palavras da pesquisadora, a gravidade da situação: “As consequências da pandemia para esse grupo de trabalhadores são muito mais desastrosas. São pessoas que trabalham quase sempre cumprindo ordens de forma silenciosa e completamente invisibilizadas pela gestão, por suas chefias imediatas, pela equipe de saúde em geral e até pela população usuária que busca atendimento e assistência. Portanto, são desprovidos de cidadania social, técnica e trabalhista. Falta o valioso pertencimento de sua atividade e ramo profissional.” A pesquisa inédita, portanto, evidencia “uma invisibilidade assustadora e cruel nas instituições”, cujo resultado é o adoecimento, o desestímulo em relação ao trabalho e a desesperança.

Resultados

Os resultados do estudo da Fiocruz apontam que 53% dos “invisíveis” da saúde não se sentem protegidos contra a COVID-19 no trabalho. O medo generalizado de se contaminar (23,1%), a falta, escassez e inadequação do uso de EPIs (22,4%) e a ausência de estruturas necessárias para efetuar o trabalho (12,7%) foram mencionados como os principais motivos de desproteção. Ainda de acordo com 54,4% dos trabalhadores, houve negligência acerca da capacitação sobre os processos da doença (Covid-19) e os procedimentos e protocolos necessários para o uso de EPIs.

As exigências físicas e mentais a que esses trabalhadores estão submetidos durante as atividades realizadas – pressão temporal, interrupções constantes, repetição de ações e movimentos, pressão pelo atingimento de metas e tempo para descanso, entre outros fatores – foram consideradas muito altas por 47,9% deles. Além disso, 50,9% admitiram excesso de trabalho.

 As mulheres (72,5%) representam a maioria dos trabalhadores e trabalhadoras invisíveis da saúde. São pretos/pardos 59%. A pesquisa mostra que 32,9% deles são jovens com até 35 anos, e a maior parte (50,3%) se encontra na faixa etária entre 36 e 50 anos. Ainda assim, embora sejam relativamente jovens, 23,9% admitiram ter comorbidade anterior à COVID-19, chamando a atenção para: 31,9% hipertensão; 15,1% obesidade; 12,9% doenças pulmonares; 11,7% depressão; e diabetes 10,4%.

 Mais da metade (52,6%) trabalha nas capitais e regiões metropolitanas. O estabelecimento de atuação predominante são os hospitais públicos (29,3%), seguidos pela atenção primária em saúde (27,3%) e os hospitais privados (10,7%). Os resultados da pesquisa também revelam que 85,5% possuem jornada de trabalho de até 60 horas semanais, e 25,6% necessitam de outro emprego para sobreviver.

 

“Temos depoimentos recorrentes da realização de ‘plantões extras’ para cobrir o colega faltoso – por afastamento provocado por contaminação ou morte por COVID-19 –, mas eles não consideram essa atividade outro emprego, e sim um bico. Muitos deles declaram fazer atividade extra como pedreiro, ajudante de pedreiro, segurança ou porteiro de prédio residencial ou comercial, mototáxi, motorista de aplicativo, babá, diarista, manicure, vendedores ambulantes etc. É um mundo muito desigual e socialmente inaceitável”, explica a coordenadora do estudo.

 

 

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