Berna é uma cidade de fontes. São mais de cem, e algumas delas ajudam a contar a história da capital da Suíça - inclusive as partes menos nobres.
Kindlifresserbrunnen - ou, traduzido do alemão corrente na cidade, "fonte do comedor de crianças" - é uma representação literal do que o nome diz. Veja só, que bela fonte, colorida, alegre! Olhe essa escultura, epa, peralá? É de um cara devorando uma criancinha, e com outras do lado dele.
Origem misteriosa
Sabemos o nome do criador da obra: Hans Gieng, escultor que assinou outras fontes em Berna.
Sabemos quando e por que ela foi feita: entre 1545 e 1546, para substituir uma fonte de madeira do século anterior.
Mas não sabemos o significado nem a inspiração dela. Aí reside a polêmica.
Ela pode ser uma referência a Krampus, criatura do folclore da Europa Central que apavora as crianças no Natal. Ou então é Cronos, o titã da mitologia grega que comia os próprios filhos para evitar que eles chegassem à vida adulta e os destronassem (a fraquejada que o derrubou foi o sexto filho, Zeus).
Há teorias mais locais também. As oito crianças representariam os oito cantões (regiões) que formaram, em 1388, a antiga Federação Suíça. O ogro seria um inimigo em comum.
A questão mais delicada é que o monstro usa um chapéu pontudo, parecido com o que os judeus eram obrigados a usar na época. Junte a isso o fato de que um dos boatos mais recorrentes e perversos que se espalhava era o que dizia que judeus faziam libelos de sangue, rituais em que eles sacrificariam crianças cristãs.
Essa lenda, gerada nos bestiais gabinetes do ódio da Idade Média e espalhada nos grupos de zap dos homens de bem de antanho, chegou à Suíça no século 13. Em 1294, um menino de Berna chamado Rudolf foi encontrado morto, motivo suficiente para um grupo de judeus ser logo acusado (como se a mortalidade infantil na Europa da época não fosse algo estratosférico).
Todos os judeus foram expulsos da cidade, Rudolf foi declarado mártir e seus restos foram trasladados para a Catedral de Berna. Durante a Reforma Protestante, que teve enorme impacto na Suíça — João Calvino chegou a transformar Genebra, em 1555, em um Estado teocrático -, Rudolf foi transferido para uma sepultura, cuja lápide atestava que ele fora assassinado por judeus. Somente no século 19 a teoria foi contestada.
O antissemitismo na Suíça da Idade Média era aterrorizante. Em 1348, cidades como Berna e Zurique promoveram extermínios e expulsões em massa. No ano seguinte, Basel trancafiou centenas de judeus, acusados de causar a Peste Negra, em uma casa de madeira feita especialmente com um objetivo: ser incendiada.
Cristãos que mantivessem qualquer relação minimamente humana com judeus, como interagir sem que a conversa terminasse na fogueira, eram punidos com humilhações públicas. Em Genebra, os judeus foram confinados em um gueto no século 15. Em Basel, eles não podiam tocar na comida nos mercados.
Interpretações
Esse passado terrível pode vir à tona ao observarmos a estátua, um canibal ensandecido com meio bebê dentro da boca, e outros no saco ao lado, esperando desesperados a morte entre os dentes do ogro. Em 1998, a prefeitura da cidade tratou do assunto, lembrando que desde o século 19 a fonte é vista, por alguns, como uma obra antissemita.
Como não há nada registrado a respeito das ideias, das inspirações do artista nem de quem a encomendou, ficou por isso mesmo.
Gieng fez algumas das mais antigas fontes de Berna. As 11 que compõem o eixo medieval da cidade trazem figuras alegóricas com mensagens morais. Por isso, outra teoria a respeito da Kindlifresserbrunnen segue nesse sentido.
Guias de turismo da cidade informam que a estátua é apenas um personagem folclórico usado para assustar crianças desobedientes. Uma lenda diz que na noite de Natal, em vez de água, brota vinho da fonte, mas quem bebe dele é possuído pelo demônio.
Qualquer que seja o significado, ela sempre fez parte da vida cotidiana na capital. Até os anos 1940, carruagens estacionavam em frente para que os cavalos matassem a sede. Camponeses, no caminho do mercado público, também bebiam na fonte, além das donas de casa das adjacências, que vinham abastecer seus baldes.
Guardas mantinham a ordem para que ninguém pegasse mais do que cinco litros nem tentasse envenenar a água — essa sim uma ameaça real. Tanta gente a usava que a fonte era um ponto de encontro efervescente na cidade. "Notícias, fofocas, rumores e escândalos jorravam e se espalhavam", escreveu, em 1949, Paul Schenk em "Berner Brunnen Chronik" ("Crônica das fontes de Berna").
Entre as outras fontes do gênero no centro histórico da capital, há o tocador de gaita de foles cujos pés descalços sugerem alguém marginalizado, um mosqueteiro de chapéu torto, que estaria indo a uma justa fútil em vez de uma batalha séria, e a de Anna Seiler, fundadora do primeiro hospital de Berna e que, em vez de vinho puro, que era a prática comum, dá vinho diluído aos pacientes. Todas belas, coloridas e cheias de detalhes.
As esculturas passam mensagens que, nas entrelinhas, geram camadas de interpretações. A do comedor de crianças é mais uma delas. O passado antissemita da cidade dá margem a polêmicas, mas no dia a dia, segundo o site suíço "The Local", ela acaba sendo mais uma curiosidade e uma brincadeira que pais usam para impressionar seus filhos.
Ainda bem que todo o delírio extremista já foi para a lixeira da história. A Suíça é uma das democracias mais antigas do mundo, é o berço da Cruz Vermelha e das Convenções de Genebra.
Mesmo na maior parte do resto do mundo isso faz mais parte do nosso passado sangrento do que do presente complicado. Qualquer livro de história mostra isso.
Sim, vez ou outra esse chorume escapa para fora, ganha vida em conspirações apalermadas ou até consegue virar ministro(a). Mas, felizmente, são exceções. Hão de ser.