Hoje, porém, a teoria do acidente de laboratório deixou as margens do boato para entrar no reino da verossimilhança. No dia 13, um grupo de 18 cientistas de universidades de elite como Harvard, Stanford e Yale publicou uma carta aberta na revista Science pedindo que a hipótese fosse considerada “seriamente” até que houvesse dados suficientes para permitir que fosse descartada. Na segunda-feira, quando o Dr. Anthony Fauci, diretor do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas dos Estados Unidos, foi questionado se ainda acreditava que o vírus havia se desenvolvido naturalmente, ele respondeu: “A verdade é que não. Não estou convencido disso, devemos continuar investigando o que aconteceu na China“.
E nesta quarta-feira, o próprio presidente Joe Biden publicou um comunicado enfatizando que as duas hipóteses são igualmente possíveis. Assim que chegou à Casa Branca, diz ele, encomendou aos serviços de inteligência um relatório sobre a origem do coronavírus que recebeu no início deste mês. A comunidade de inteligência chegou a um consenso em torno de “dois cenários prováveis”, o do contato humano-animal e o do acidente de laboratório, mas não chegou a uma conclusão definitiva. “Enquanto dois membros da Comunidade de Inteligência se inclinam para o primeiro cenário e outro se inclina para o último —cada um com confiança baixa ou moderada— a maioria dos membros não acredita que haja informações suficientes para determinar qual deles é mais provável do que o outro”. Assim, solicitou aos seus agentes redobrarem esforços e entregarem o estudo mais definitivo possível no prazo de 90 dias.
O que aconteceu entre o clima de opinião de 2020 e o de agora tem a ver com informações publicadas recentemente sobre o adoecimento de pesquisadores do laboratório e sua conexão com as mortes de mineiros no sudeste da China em 2012. Mas tem a ver principalmente com a passagem do tempo. Um ano e meio depois do surgimento do vírus, sua real origem ainda não foi confirmada, o que nos obriga a deixar em aberto as hipóteses alternativas para o salto do animal ao ser humano. Além disso, Pequim dificultou tanto as pesquisas da tardia missão da OMS que suas pobres conclusões, apresentadas em março, alimentaram ainda mais a desconfiança.
No domingo passado, um dia antes de Fauci fazer as declarações acima mencionadas, o The Wall Street Journal publicou que três pesquisadores do laboratório de Wuhan adoeceram no outono de 2019 e precisaram de atendimento hospitalar, embora na China não seja incomum ir a hospitais por doenças comuns ou sazonais. A Administração de Donald Trump já havia alertado sobre isso, com menos concretude, em um relatório de 15 de janeiro, poucos dias antes de passar o poder ao democrata Joe Biden. Uma ficha de dados do Departamento de Estado indicava que o Governo dos Estados Unidos tinha “razões para acreditar que vários pesquisadores do instituto adoeceram antes que o primeiro surto [de coronavírus] fosse identificado, com sintomas compatíveis com a covid-19 e com doenças sazonais”. Não houve avanços conhecidos na determinação da solidez desta pista.
O laboratório chinês é suspeito devido à sua pesquisa com vírus obtidos de morcegos, e o fio investigador conduz a mortes por pneumonia detectadas em uma mina na província de Yunnan, no sudoeste da China. De acordo com o Journal, em abril de 2012 seis mineiros ficaram doentes, com sintomas semelhantes aos causados pela covid-19, depois de entrarem na mina para retirar fezes de morcegos. Os testes indicaram que eles sofriam de pneumonia e, em meados de agosto, três deles tinham morrido. Especialistas do Instituto de Virologia de Wuhan (WIV) começaram a investigar e acabaram obtendo cerca de 1.000 amostras na mina.
Os pesquisadores encontraram nove tipos de coronavírus nessas amostras. Entre eles, um conhecido como RaTG13 e que em fevereiro passado, no início da pandemia, indicaram que tinha um código genético 96,2% semelhante ao do SARS-COV-2. É o “parente” mais próximo do vírus que causa a covid-19 encontrado até agora, embora ainda a uma enorme distância evolutiva: os dois tipos se separaram há várias décadas. O virologista Shi Zhengli, o principal especialista nesse tipo de vírus no WIV, afirmou que os mineiros não adoeceram de covid-19.
Em um relatório publicado na última sexta-feira em formato preprint no repositório BioRxiv, sem revisão de outros especialistas, os cientistas do WIV dão detalhes sobre os coronavírus encontrados na mina, afirmando: “Estes resultados sugerem que [os coronavírus] que encontramos nos morcegos podem ser apenas a ponta do iceberg.” No entanto, dizem que os oito que não são o RaTG13, quase idênticos entre si, são apenas 77% semelhantes ao SARS-COv2. Não mostraram capacidade de infectar uma célula humana usando o receptor que utiliza o que provoca a covid-19, de acordo com estes pesquisadores. Tampouco o RaTG13.
“Embora existam conjecturas que falam da possibilidade de um vazamento do RaTG13 do laboratório que teria causado o SARS-COV-2, os testes nos experimentos não o corroboram”, conclui o relatório.
Nesta quarta-feira um porta-voz da OMS respondeu a este jornal por e-mail que a organização agora está revisando as recomendações do relatório sobre a origem do vírus em nível técnico e estas equipes técnicas elaborarão uma proposta para os próximos estudos a serem realizados. As próximas investigações incluiriam a hipótese do acidente do laboratório, mas não está claro se serão realizadas.
Pequim sempre rejeitou taxativamente essa teoria e se aferra às conclusões do relatório da OMS. “Os Estados Unidos continuam promovendo a teoria do vazamento de um laboratório. Estão preocupados com a rastreabilidade ou estão apenas tentando distrair a atenção?”, perguntou na segunda-feira o porta-voz do Ministério das Relações Exteriores chinês, Zhao Lijian, depois que o The Wall Street Journal publicou suas informações sobre os três supostos trabalhadores doentes do Instituto de Virologia de Wuhan. Embora a China não tenha descartado definitivamente, pelo menos em público, a ideia de uma segunda missão, é improvável que concorde com ela se seus objetivos incluírem uma nova visita ao Instituto de Virologia ou a outras instalações similares.
A China não apenas nega a possibilidade de um vazamento. Também acusa os Estados Unidos. Em plena esgrima verbal com Washington sobre as causas e a gestão da covid-19 quando a pandemia começou a chegar aos EUA, o próprio Zhao —estandarte da nova geração de diplomatas chineses conhecida como “lobos guerreiros”, muito mais agressivos na retórica a favor de seu país— alimentou no ano passado em sua conta no Twitter uma teoria da conspiração: a de que o vírus havia chegado a Wuhan em outubro de 2019 trazido por soldados norte-americanos que participaram dos Jogos Militares realizados naquela cidade.
Mesmo agora Pequim também insiste que os Estados Unidos devem permitir em seus próprios laboratórios militares de armamento biológico em Fort Detrick uma inspeção semelhante à realizada pelos especialistas da OMS em Wuhan no começo deste ano.
As acusações e contra-acusações entre Washington e Pequim acompanharam a evolução da própria pandemia, paralelamente à entrada em parafuso das relações entre as duas grandes potências mundiais. E, arrastados para o meio dessa disputa, estão os trabalhos científicos de busca da origem da covid-19.
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