Segunda Onda no Brasil?
MUNDO
Publicado em 02/11/2020

A segunda onda da pandemia vai chegar ao Brasil? Veja o que dizem 3 autoridades no assunto

A segunda onda da Covid na Europa, com países adotando novos lockdowns, traz algum prenúncio para o Brasil? Entenda

SÃO PAULO – Depois de superar o período mais crítico da pandemia em março e abril, e experimentar uma espécie de normalidade nos meses seguintes, países do Hemisfério Norte estão vendo o filme se repetir. E os números cada vez mais preocupantes da doença na Europa e dos Estados Unidos alarmam novamente o mundo e despertam a dúvida: o Brasil pode viver uma segunda onda de coronavírus?

Após a nova explosão de casos, os governos da Alemanha e da França anunciaram, na última quarta-feira (28), um lockdown parcial para conter a segunda onda da Covid.

Na Alemanha, o novo bloqueio, que começa no dia 2 de novembro, foi anunciado depois que o país registrou quase 15 mil novos casos em 24 horas, o maior número de diagnósticos diários desde o início da pandemia.

Logo em seguida, o governo francês também anunciou seu lockdown, que começa nesta sexta-feira (30). As novas medidas foram adotadas após a França registrar 52.010 infecções no domingo, batendo seu recorde diário de casos, além de 523 mortes na terça-feira (27), o número mais alto de óbitos desde abril.

 

 

Já o Reino Unido registrou mais 367 vítimas também na última terça-feira, um recorde de óbitos desde o fim de maio. A Itália, que também viveu uma primeira onda devastadora na pandemia, relatou 221 mortes na última terça-feira, recorde diário de mortes desde meados de maio.

A Rússia, que só fica atrás de Estados Unidos, Índia e Brasil em número de infecções, também registrou seu recorde diário de óbitos nesta semana, com 346 vítimas na última quarta-feira.

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), as mortes diárias por Covid-19 em território europeu aumentaram quase 40% na última semana, ante a semana anterior.

Nos Estados Unidos, a situação é igualmente preocupante. O país bateu o recorde global de 500 mil novos casos em uma semana e registrou 80.662 novos casos da doença nesta quarta-feira (28), o maior número de casos de Covid já registrado em um dia em todo o mundo.

Para entender melhor o que essa segunda sinaliza sobre o estágio da epidemia em âmbito global e tentar traçar um paralelo com possíveis implicações para o Brasil, o InfoMoney conversou com especialistas da área da saúde para entender se o Brasil também vai enfrentar uma segunda onda de Covid.

 

 

Confira a seguir os depoimentos deles.

Margareth Dalcolmo

Margareth Dalcolmo é pneumologista, criadora e coordenadora do ambulatório do Centro de Referência Professor Hélio Fraga, da Fiocruz. É membro do Comitê Assessor em Tuberculose do Ministério da Saúde e das Comissões Científicas da Sociedade Brasileira de Pneumologia. É também docente da pós-graduação da PUC-RJ e tem experiência na área de doenças respiratórias, com ênfase em pesquisa clínica em tuberculose e outras micobacterioses. (Crédito: Divulgação)

Vamos ter uma segunda onda no Brasil?

Resposta: Provavelmente, sim

“A segunda onda vai, seguramente se abater de maneira muito forte na Europa, mesmo em países com grande eficiência no sistema de saúde, tendo em vista a crescente ocupação de leitos hospitalares com casos mais graves. Sem dúvida, isso pode gerar medidas mais drásticas de todos os governos europeus.

Da mesma forma que os países europeus nos antecederam na primeira onda, essa segunda onda europeia pode significar muito para o Brasil.

Eu cheguei a usar uma metáfora da Tsunami: nós não soubemos aproveitar o recuo do mar, que é o que ocorre nas Tsunamis e nesta analogia representa os países europeus, que nos antecederam nessa epidemia. A situação da Europa pode ser um bom prenúncio sobre as medidas que o Brasil precisa adotar para evitarmos uma segunda onda tão severa.

Porém, nós não soubemos aproveitar essas primeiras lições da Europa, de modo que a epidemia bateu no Brasil de uma maneira muito rápida, muito intensa, com um resultado bastante dramático logo de início nas primeiras semanas.

Portanto, a segunda onda de infecção já era razoavelmente esperada na Europa depois das grandes reaberturas durante o verão europeu. Ao subestimar o poder da infecção, nós abrimos margem para os casos voltarem a subir. Uma segunda onda nunca está descartada, principalmente no Brasil.

Não é muito surpreendente que esteja havendo essa segunda onda, considerando que estamos falando de viroses respiratórias de transmissão não pessoa a pessoa, mas com o R, que é aquela taxa de transmissão comunitária, bastante alta, que chega até em níveis de um para três em determinadas situações.

Vacinas saem ainda este ano?

Por tudo o que estamos cientes e acompanhando de perto nós não teremos vacinas no ano de 2020. Todas essas conjecturas já mostram isso.

 

 

Pelo desenvolvimento das fases três [última fase antes da aprovação] das diversas vacinas em teste, inclusive no Brasil, o não atingimento do número de voluntários necessários e do número de casos de Covid-19 entre os voluntários vacinados, para permitir uma análise, mostra que ainda levaremos mais tempo, provavelmente este mês de novembro todo.

Depois disso, ainda teremos uma análise mais profunda, um pedido de registro e a definição das diretrizes logísticas e de distribuição da vacinação. Então, de forma realista, não podemos prever vacinação no país antes do primeiro semestre de 2021.

Veja os passos que uma vacina ainda deve percorrer para chegar à toda a população, depois de ser aprovada.

Natalia Pasternak

Natalia Pasternak é formada pelo Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP). É PhD, com pós-doutorado em microbiologia, na área de Genética Molecular de Bactérias pelo Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP). É a primeira brasileira a integrar o Comitê para Investigação Cética (CSI, na sigla em inglês), criado pelo astrofísico norte-americano Carl Sagan. E é diretora-presidente do Instituto Questão de Ciência (IQC), o primeiro instituto brasileiro para promoção do pensamento crítico e racional e de políticas públicas baseadas em evidências científicas. (Crédito: Divulgação)

Vamos ter um segunda onda no Brasil?

Resposta: Possivelmente, sim

“A população, tanto aqui no Brasil, como nos Estados Unidos e na Europa, está exausta. E ninguém gostaria de ver sua liberdade restringida novamente, então qualquer medida que conseguir fazer uma boa contenção da pandemia sem a necessidade de recorrer a um lockdown é válida.

Essa segunda onda na Europa deve ser olhada como sinal de alerta para o Brasil, para que o país se prepare para uma possível segunda onda por aqui, por mais diferente que sejam as realidades entre os países.

Não podemos assumir uma posição em que se pensa, de maneira mágica, que a segunda onda só acontece em outros países. É mais ou menos o mesmo pensamento mágico que tivemos em janeiro, quando vimos os casos subindo na Europa e achamos que não chegariam aqui. É o momento de olhar para esse sinal de alerta com cautela para nos prepararmos para uma possível segunda onda no Brasil também, em vez de ficar imaginando que isso nunca vai acontecer aqui.

Uma segunda onda de infecções acontece em diversos países, e aqui no Brasil não tem por que ser diferente, por inúmeros fatores e variáveis. Enquanto a gente não tem soluções mais efetivas como uma vacina, a gente sabe que o vírus não foi a lugar algum, ele continua circulando entre nós, uma segunda onda de infecção é sempre esperada. 

Por que a segunda onda está acontecendo?

A pandemia nunca tem uma única causa. Mas uma maneira simples de exemplificar isso é entender que os números gerais de uma pandemia dependem do número de pessoas suscetíveis ao contágio, que estão em circulação.

 

 

O vírus é transmitido de pessoa para pessoa, ele precisa de pessoas em contato. Então, quando boa parte das pessoas estão reclusas, cumprindo a quarentena, evitando ao máximo contato com outras pessoas, essa taxa de transmissão cai.

Quando a gente começa a fazer uma reabertura e a reinserir essas pessoas na circulação da cidade, a taxa de transmissão comunitária sobe, por que o vírus encontra mais pessoas suscetíveis, que antes estavam protegidas, porque não estavam circulando.

Na Europa, principalmente os jovens voltaram a circular, pela exaustão que a própria quarentena causa. Nós vemos jovens mais aglomerados e indo com mais frequência a restaurantes, bares, festas, o que aumenta muito a taxa de transmissão comunitária e acaba causando uma segunda onda.

Vale dizer que isso está acontecendo em alguns estados dos EUA, mas reforço que devemos olhar para esses países exatamente como uma medida de cautela. 

Como tentar mitigar os efeitos de uma segunda onda no Brasil?

Novamente, o Brasil deve se preparar para esse cenário tentando uma boa comunicação com a sociedade, para que a gente não repita os mesmos erros do início da pandemia. É essencial contar efetivamente com a colaboração da sociedade, lembrando que vai ser mais difícil agora, porque a população está cansada de uma quarentena prolongada e mal feita, que trouxe poucos resultados.

[A quarentena] Poderia ter trazido resultados mais representativos, então isso causa uma frustração na população. E é com essa população frustrada que vamos ter que tentar uma boa comunicação efetiva, que traga a população para perto do cientistas, para que a gente possa contar com a colaboração deles para evitar uma segunda onda muito severa no Brasil.

As medidas que vão se refletir mais diretamente no nosso número de casos e mortes são: comunicar bem a população, para contar com a sua colaboração; implementar boas medidas de quarentena, com distanciamento físico e social; e conscientizar as pessoas sobre a higiene das mãos, sobre a importância de evitar aglomerações e incentivar o uso de máscaras.

Quando relaxamos e colocamos mais pessoas em circulação, a taxa de transmissão tende subir. É simplesmente assim que funciona: a taxa de de transmissão não é fixa, ela é móvel, ela depende justamente do comportamento das pessoas e das medidas.

Vacinas saem ainda este ano?

Em relação às vacinas, é bastante irresponsável prometer datas de entrega, sendo que nenhuma das vacinas concluiu a fase três de testes.

Antes disso não tem como falar em data de chegada, em data de entrega, em data de produção e em data de vacinação. Não é possível colocar uma data de vacinação e prometer doses se ainda não não temos como prometer que essas vacinas vão funcionar, o quanto vão funcionar e quando nós teremos doses em suficientes para conseguir organizar as campanhas de vacinação e efetivamente vacinar as pessoas.

Então, entre concluir a fase três, a aprovação pelas agências regulatórias e ter a vacina disponível para toda a população no posto de saúde, tem um intervalo de mais ou menos uns seis meses.

Uma medida razoável seria pensar, mais ou menos, no meio do ano que vem, se tudo correr bem, se não tivermos nada no caminho atrapalhando a conclusão da fase três.

Nós não devemos começar a prometer datas para a entrega dessas vacinas antes disso. Uma vacina segura e eficaz é a forma mais efetiva de começar a controlar a taxa de transmissão de uma epidemia.

E não quer dizer que começou a vacinar acabou pandemia: é um processo que demora até vermos os efeitos práticos da vacinação. Mas sem uma vacina, vamos ter que monitorar constantemente os números para garantir que a taxa de transmissão permaneça baixa. E é possível que ocorram surtos ocasionais ou que a doença, com o tempo, se torne endêmica ou sazonal, mas não temos como prever.

Para saber como vai ser o comportamento do vírus daqui para frente, temos que contar com um bom sistema de monitoramento e rastreamento, com muitos testes para identificar surtos locais mais rapidamente.”

Julio Croda

Julio Croda possui graduação em Medicina pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), residência médica em Infectologia e doutorado pela Universidade de São Paulo (USP). É professor associado da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS) e da Yale School of Public Health. Julio também é especialista em C&T Produção e Inovação em Saúde Pública pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). (Crédito: Divulgação)

Vamos ter segunda onda no Brasil?

Resposta: Sim

“Países da Europa têm evitado novos lockdowns por que o impacto econômico da primeira onda foi muito grande. Eles vão estabelecer medidas mais restritivas só se houver um aumento significativo de internações, o que não ocorre em toda a Europa, mas só em algumas cidades.

O próprio estado de São Paulo fez um monitoramento muito mais baseado na taxa de ocupação de UTI do que na velocidade da infecção.

Quanto maior a intensidade da primeira onda, mais imunidade coletiva a população geral tem.

Lógico que precisamos considerar a queda de anticorpos, mas a reinfeção é um fenômeno raro, com menos de 1% de ocorrência. Então a maioria dos países que apresentou uma grande circulação do vírus anteriormente, pode ter uma segunda onda menor que a primeira.

E é isso que precisamos observar mais atentamente na Europa. Existem ainda muitas pessoas suscetíveis na Europa, porque as medidas iniciais de lockdown foram bastante efetivas. Talvez depois da Ásia, a Europa seja o único continente em que foi possível aplicar essas medidas mais restritivas de circulação. Então, quanto maior o sucesso na contenção do vírus na primeira onda, maior a preocupação na segunda onda, principalmente nesse começo de inverno na Europa.

Como mitigar os efeitos de uma segunda onda no Brasil?

Precisamos preparar o serviço de saúde para os doentes e, principalmente, após quase um ano do primeiro caso na China, muitos países se prepararam para fazer o que chamamos de contact tracing, que é identificar precocemente os casos e fazer isolamentos localizados para evitar lockdowns mais intensos.

Em relação às particularidades brasileiras, a curva epidemiológica por aqui é um pouco diferente, porque não conseguimos fazer um lockdown no Brasil, tivemos um platô de mais de 90 dias com mil óbitos diários e diversos estados e cidades nunca tiveram isolamentos acima de 50%. Proporcionalmente, mais pessoas adquiriram o vírus e foram a óbito aqui do que na Europa.

Entretanto, o que podemos esperar dessa segunda onda para o Brasil: precisamos ficar atento porque aqui tivemos a liberação do teto de gastos, com o orçamento de guerra e para 2021 não está previsto esse orçamento.

Para o ano que vem, existe uma previsão de queda do orçamento do Ministério da Saúde, então caso a gente tenha uma segunda onda por aqui, talvez estejamos menos preparados do que na primeira onda, já que o financiamento não vai ser o mesmo do que foi na primeira onda, apesar de toda expertise que ganhamos para tratar os pacientes. Isso pode gerar uma escalada importante do vírus nos próximos meses, precisamos ficar atentos.

Uma segunda onda já era esperada, já que ainda há muitas pessoas suscetíveis e não existe uma vacina, que seria solução definitiva. Então, como temos uma sazonalidade dos vírus respiratórios, existe uma tendência de aumento de casos em períodos diferentes.

Temos que ficar muito atentos sobre o que vai acontecer no Norte e no Nordeste em relação a essa segunda onda, e aí podemos entender como será o comportamento dessa segunda onda no restante do Brasil.

Essa segunda onda era, sim, previsível para os cientistas e especialistas. A nossa preocupação é que existe muita dificuldade de se implementar novamente medidas de distanciamento, já que existe uma clara saturação da sociedade, tanto pelo impacto econômico quanto pelo impacto psicológico.

É muito difícil prever com exatidão quando ou como essa segunda onda deve atingir o Brasil, mas precisamos entender que não podemos descartar nada. A situação da Europa mostra isso, é complicado manter o controle.

O Brasil nunca atingiu um isolamento adequado, então teremos que lidar com a imunidade coletiva, precisamos manter as medidas de distanciamento, prevenção e higiene. Além de investir melhor em medidas de contact tracing.

Nesse aspecto da imunidade de rebanho, pelo alto número de pessoas que já foram infectadas no Brasil, podemos, sim, observar que boa parte dessa população já tem uma certa proteção conta a doença, mas é muito difícil analisar isso de forma quantitativa.

Muitos estados ainda não conseguiram estruturar uma rede de testagem. O Brasil ainda testa muito pouco, faz muito pouco contact tracing. Embora alguns estado tenham evoluído nessas questões, ainda precisamos ampliar as testagens neste momento de queda dos casos e treinar as equipes para melhor testar e manter as medidas preventivas.

 

Testar mais, treinar melhor e manter as restrições são os três pilares para que possamos evitar medidas mais extremas. Isso tudo precisa ser reforçado agora, nesse período interepidêmico, até uma nova onda. Esse é o momento de planejamento e contenção.”

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